Estive na praia esses dias e, conforme mandava o senhor Francisco de Assis França, mundialmente conhecido como Chico Science, tomei uma cerveja antes do almoço e me vi pensando melhor. Não só pensei, como fui imediatamente transportado em ideias para as areias de Recife e o cenário cultural efervescente que deu origem ao Mangue beat nos anos 90. É impossível olhar o mundo com algum senso crítico sem recorrer à sabedoria caótica de Chico Science e da Nação Zumbi.
Dois CDs, um manifesto, uma revolução e uma morte prematura.
O artista faleceu aos trinta anos, num acidente de carro em 1997. É difícil avaliar o impacto que este pernambucano nascido em Olinda teve na música nacional. Basta escutar o som dele uma vez para atestar sua criatividade e veia inovadora. Chico Science misturou elementos sonoros do Maracatu, Hip-hop, Metal e música eletrônica para integrar um gênero e movimento cultural que entrou para a história como o Mangue beat. E eu, que sou amante confesso dessas sinapses improváveis, não pude deixar de me curvar ao estilo carregado de críticas sociais ácidas, marcado pelos tambores pesados e solos de guitarra elétrica. A qualidade é simplesmente incrível. À época, Gilberto Gil, em entrevista à Interview Magazine, chegou a declarar que Chico Science e Nação Zumbi eram “o que surgiu de mais importante na música brasileira nos últimos vinte anos”. Imortais falam, os mortais respeitam.
A conexão entre o local e o global, que incluía desigualdade, caranguejos e tecnologia cibernética como temáticas, me remetem à Milton Santos e seu livro Por uma outra globalização. O incomparável geógrafo baiano, vencedor do Prêmio Vautrin Lud em 1994, expõe, nesta obra, as características mais frias e perversas do processo da globalização. Mas não é só um texto de exposição, há, ali, uma profunda esperança na capacidade dos excluídos criarem movimentos de resistência à tentativa do grande capital de tornar toda cultura homogênea e pasteurizada. Vejo Chico Science como um campeão vanguardista nesta resistência. Tão marcante que deixou herdeiros musicais. Quando hoje escuto Baiana System, Psirico, ÀTTØØXXÁ, Cordel do Fogo Encantado, Filipe Lorenzo, Luedji Luna e Maya, consigo perceber as sementes plantadas no álbum Da lama ao caos, lançado no mesmo ano em que Milton Santos foi internacionalmente laureado.
O Mangue beat gerou filhos. Artistas socialmente engajados, corajosos e desapegados de rótulos. Eles prosseguem misturando sonoridades e desafiando estigmas para criar sons cada vez mais poderosos e singulares. Música com uma mensagem de emancipação. Música para entreter e despertar. Como disse Chico Science em “Monólogo ao pé do ouvido” :
São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade
Viva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi!
Antônio Conselheiro!
Todos os panteras negras!
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia.
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