É impossível não racializar debates em sociedades que foram fundadas em hierarquias baseadas no tom da pele. O diálogo com pessoas inteligentes é enriquecedor. E tenho recebido com felicidade o retorno dos leitores desta coluna e percebido o quanto eu converso com pessoas cultas através deste canal. O texto de hoje foi construído a partir da emergência do tema, mas também a pedidos do público. Em especial a solicitação de Fernando Trindade, amigo e entusiasta da Tempestade de Ideias.
No dia 27 de Março tivemos a cerimônia do Oscar e grandes façanhas foram realizadas. É edificante celebrar triunfos de artistas negros num campo que, historicamente, é quase exclusivo dos brancos. Este que vos escreve também se orgulha de ter acertado alguns palpites. Nesta coluna você teve oportunidade de conhecer a história da família Madrigal em Encanto, ganhador do Oscar de Melhor Animação (que você pode reler clicando AQUI.) Na categoria de Melhor Documentário, venceu o excelente Summer of Soul, do diretor afroamericano Questlove. (sobre o qual falei NESTE TEXTO).
Eu afirmei NESTA COLUNA que a atuação de Will Smith em King Richards era de nível Oscar e fiquei muito feliz de ter também acertado. A categoria de Melhor Ator é uma das mais nobres do Academy Awards e, antes dele, apenas cinco homens negros haviam recebido a estatueta. O pioneiro foi o lendário Sidney Poitier, no filme Uma voz nas sombras, de 1964. Este é o tamanho da realização de Smith. A consagração de uma carreira com números impressionantes e excelentes performances. Uma vitória merecida, que foi vista pelo mundo inteiro.
O mundo inteiro também viu os limites da comédia serem rompidos. Chris Rock (também um dos raríssimos negros a apresentarem a cerimônia do Oscar) fez uma piada infeliz sobre a aparência de Jada Pinkett Smith, esposa de Will, que sofre de uma doença degenerativa que lhe fez cair os cabelos. Imagina você estar no evento mais luxuoso da indústria cinematográfica mundial e ter sua companheira(o) sofrendo este grau de exposição ao ridículo. É mais que ultrajante. É enfurecedor. Discordo totalmente da atitude de Will Smith de aplicar o tapa na cara de Chris Rock. Contudo, sou sensível a Will e imagino que qualquer um teria uma enorme dificuldade para se conter naquele contexto.
O incidente infeliz foi um prato cheio para os racistas de plantão, no intento de reforçar falsos estereótipos sobre a forma violenta dos negros resolverem seus problemas. Esta é uma postulação falsa, uma vez que os históricos perpetradores da violência como método de desenvolvimento são os colonizadores europeus. Uma violência que se inseriu na formação social e nas consciências. Inclusive no que se refere à formação de casais de pessoas negras. O Sociólogo Henrique Restier, no livro Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades, defende que a união afetiva de casais negros é uma subversão a ordem imposta pelos brancos. Ser feliz e formar uma família com descendentes negros seria uma provocação ainda maior, pois, na ideologia da mestiçagem, o homem negro não deveria ter acesso a estas realizações.
Parabéns Will Smith. Você ganhou um Oscar. Você tem uma esposa maravilhosa e talentosa, assim como são os seus filhos. Sua trajetória em si é um tapa na cara de sociedades estruturalmente racistas. Quanto ao tapa em Chris Rock, você teve grandeza e humildade para reconhecer o erro e pedir desculpas. Você é muito maior que este acontecimento. Festa na família Smith, festa para Questlove e festa na família Williams (afinal, o filme é sobre ela). Quando pessoas negras brilham, é lindo.
Ps.: Democracia é um valor inegociável. Ditadura nunca mais!
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